NILÓPOLIS - Ao acordar na manhã do dia 9 de maio de 2018, Tiago Viana não imaginava que estava prestes a viver uma reviravolta em sua vida. Logo pela manhã policiais civis entraram em sua casa para cumprir um mandado de prisão a seu desfavor. Morador de uma comunidade em Nilópolis, Baixada Fluminense do Rio, Tiago teve a foto reconhecida na delegacia pela vítima de um roubo que nunca cometeu. Um levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio mostra que ele não foi um caso isolado. De acordo com o relatório, em média, inocentes ficaram presos por 1 ano e três meses antes mesmo do julgamento. Um deles chegou a ficar quase seis anos preso preventivamente, mas ao fim da ação não foi considerado culpado pelo crime.
Ao todo a Defensoria Pública analisou 242 processos, com 342 réus, que correm no Tribunal de Justiça do Rio, de casos de 2005, 2007 e de 2013 a 2021. Quase a metade das ações são da capital e a maioria pelo crime de roubo. De cada 10 processos levantados pelos pesquisadores, três resultaram na não condenação do réu. E entre os absolvidos, 83% ficou preso em algum momento do curso da ação. No reconhecimento fotográfico, a vítima ou testemunha identifica a pessoa que acredita ser autora do crime através de uma fotografia. As delegacias do Rio possuem um um “álbum de suspeitos” com imagens tiradas até de redes sociais.
Há um artigo no Código de Processo Penal que determina como deve ser conduzido o reconhecimento fotográfico, mas segundo a Defensoria a norma é pouco seguida. De acordo com a lei, a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida. Depois, o suspeito deve ser colocado, se possível, ao lado de outros com qualquer semelhança, para a vítima ou testemunha apontar quem realizou o crime.
— O que queremos mostrar é como é a dinâmica do processo criminal do reconhecimento que acaba sendo feito sem observar a lei, que prevê a descrição pela vítima primeiro e depois reconhecer ela ao lado de outras que se parecem com ela — explica Carolina Haber, diretora de pesquisa da Defensoria Pública do Rio
Ao todo, contra Tiago Viana foram abertas nove ações por roubo. Destas, em sete ele já foi considerado inocente e outras duas ainda estão em curso. No último mês, a Defensoria conseguiu uma liminar na Justiça que determina a exclusão da sua foto do cadastro de suspeitos da 54ª Delegacia da Polícia de Nilópolis. Além do trauma de ter sido preso, as consequências reverberam até hoje em sua vida. A obra de sua casa, que até o momento da prisão estavam com um bom andamento, está estagnada. O sonho do trabalho com carteira assinada também parece estar longe de voltar a se concretizar. Para ajudar no sustento da família ele trabalha em dois períodos: de manhã como mototaxista e a noite como motoboy.
— De todos esses roubos eu tenho provas do que eu estava fazendo no dia. Em um deles fui acusado de roubar em Nilópolis pouco tempo depois de ter sido solto. Mas estava em Mangaratiba na casa da minha mãe com minha família. Perdi um ano da minha vida, aniversários dos meus filhos, a morte da minha vó — que não consegui dar um último abraço, por exemplo. Foram oito meses presos sabendo que era inocente — conta Tiago.
O levantamento também aponta que o perfil dos reconhecidos por fotografia é formado principalmente por homens negros.
— Até hoje não sei explicar o que levou eu ser preso. acho que o racismo está implícito por ser negro e morador de comunidade. No álbum de foto não tem só negro, mas a maioria que são acusados por fotografia são negros — desabafa Tiago.
Os pesquisadores também analisaram as 50 ações em que a prisão preventiva do acusado foi negada pelo juiz. O principal motivo que os magistrados apontaram para manter o réu em liberdade são "fragilidade", lapso temporal entre os fatos e o reconhecimento e a foto ser o único elemento de convicção para a ação.
"Destaca-se principalmente a inconstância entre o reconhecimento fotográfico em sede policial, criticado como “viciado” ou “induzido” em alguns casos, e o reconhecimento realizado em juízo, demonstrando exemplos significativos de reconhecimento negativo em que há ausência da descrição física do autor ou discrepância entre essa descrição e o réu reconhecido, além dos casos em que a própria vítima assume incerteza ou incapacidade para proceder ao reconhecer em juízo ou realiza reconhecimento incompatível com o realizado em sede policial", diz trecho do relatório.
Procurado, o Tribunal de Justiça do Rio disse não ter sido comunicado sobre o levantamento e não sabe quais foram os critérios adotados no estudo. No entanto, destacou que em janeiro o presidente do Tribunal publicou uma resolução para que os magistrados "reavaliem, com a urgência necessária, as decisões em que a prisão preventiva do acusado foi decretada com base somente no reconhecimento fotográfico, realizado sem a observância da lei (artigo 226 do Código de Processo Penal), no procedimento investigatório respectivo, inclusive nos feitos suspensos na forma prevista no artigo 366 do Código de Processo Penal (CPP)".
Procurada a Polícia Civil do Rio afirma que "reforça que os delegados são orientados a não usarem apenas o reconhecimento fotográfico como única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de suspeitos. A instituição informa que o método, que é aceito pela Justiça, é um instrumento importante para o início de uma investigação, mas deve ser ratificado por outras provas técnicas. Apenas um caso desta natureza ocorreu integralmente nos últimos dois anos. Uma sindicância foi instaurada para apurar o fato e os envolvidos receberam a devida punição."
Via: Jornal Extra
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